A Covid-19 foi devastadora para a classe médica no Rio Grande do Norte. Em pouco mais de 100 dias, a doença causou a morte de 12 profissionais no Estado. O médico Geraldo Ferreira, presidente licenciado do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Norte (Sinmed), em entrevista ao Agora RN, fala sobre os desafios da categoria e também faz críticas à gestão do Governo do Estado na estruturação da rede pública hospitalar
AGORA RN – Na sua avaliação, em que momento da pandemia nós estamos no Rio Grande do Norte? O pior já passou?
GERALDO FERREIRA – Os estudos tentam enquadrar a historia das epidemias no formato temporal de um sino, com uma progressão de subida de casos, platô, seguida de queda relativamente rápida. Medidas como o isolamento social ou mesmo lockdown promovem um achatamento da curva e uma subida, platô e queda mais demorados. Isso se faz em função da necessidade de estruturar os serviços de saúde, procurar e testar tratamentos efetivos ou produzir uma vacina. O Rio Grande do Norte iniciou cedo o isolamento social, dia 12 tivemos confirmação do primeiro caso e dia 20 de março tivemos o primeiro decreto de isolamento do Governo Estadual. Sequenciado por outras medidas restritivas e anúncios espantosos por parte da Sesap de possibilidade de 11 mil óbitos, a pandemia seguiu seu curso. A ampliação de leitos foi praticamente fictícia, sendo via de regra mudança de leitos que já existiam para serem exclusivos Covid-19, e tentativas de abertura de leitos de UTIs, que já estavam previstos pelo colapso em que o sistema de saúde vivia mergulhado. Seguido o curso da pandemia, melhorou o conhecimento da doença, o tratamento precoce ou hospitalar deu seus resultados, atingiu-se um número aparente de 30% de infectados na população, que com a possibilidade de um contingente ainda desconhecido ser imune, parecem estar promovendo uma queda em torno de 50% de novos casos que buscavam o primeiro atendimento no pronto-socorro. Isso nós detectamos a partir de 25 de junho, inicialmente em visita a hospitais privados, posteriormente com os médicos das Unidades de Saúde da Família referências para Covid-19 e também nas Upas. Os leitos hospitalares de enfermaria e UTI ainda estão lotados, mas parecem refletir a infecção de duas semanas anteriores. Nada disso deve ser motivo para diminuir as medidas de higiene, álcool gel, uso de máscara, distanciamento social e evitar aglomerações. Apesar de ainda termos uma travessia pela frente, há sinais de que o pior pode estar passando, mas casos residuais e riscos de segunda ou terceira ondas.
AGORA – O curso da pandemia no Estado difere do restante do País?
GF – O curso é semelhante, mas o impacto é diferente. Tivemos aqui óbitos que seriam evitados se a orientação não fosse evitar os serviços de saúde e só procurar se houvesse falta de ar. Isso foi terrível para a população. Vidas se perderam por causa disso. Outra questão foi no início a resistência em tratar as pessoas, motivada pela intensa briga ideológica que se instalou no País e no Estado. Por último mais de 200 pessoas que morreram esperando um leito de UTI mostra a incompetência gerencial em transformar os recursos federais para Covid-19, cerca de 155 milhões para o RN, em ações e leitos efetivos para a população acometida pela Covid-19.
AGORA – Governo do Estado e prefeituras deram início ao processo de retomada gradual das atividades econômicas. O quadro epidemiológico permite essa flexibilização?
GF – A pandemia é superada pela queda na transmissão pessoa a pessoa, pela descoberta de um tratamento, pela descoberta de uma vacina, por se atingir uma imunidade de rebanho ou pela queda da virulência do agente causador. Um pouco de cada coisa está avançando. A flexibilização diante disso pode avançar, mas teremos que acompanhar momento a momento e se necessários fazer recuos pontuais, isso não será demérito para a flexibilização. Sempre haverá o risco de alguma transmissão, quando parte da população que estava resguardada voltar a circular. De qualquer forma chamo atenção para uma coisa, idosos e portadores de doenças crônicas graves precisam ser rigorosos na sua proteção pessoal.
AGORA – Como tem sido a rotina dentro dos hospitais?
GF – O que encontramos nos hospitais por parte de médicos e profissionais de saúde é abnegação, entrega, coragem, heroísmo. Todos sabem que de alguma forma estão arriscando suas vidas. Os doentes nos hospitais são muito graves, nas UTIs são gravíssimos. Vive-se com a ameaça de agravamento ou morte desses pacientes a todo instante. Mas não tenho encontrado medo, tenho encontrado pedido de equipamentos de proteção, condições de trabalho e leitos para salvar os pacientes. Quando alguém da equipe adoece há sempre a expectativa de que vai se recuperar, como se não fosse justo morrerem os que estão trabalhando para salvar os outros, e quando alguém morre há um sentimento de gratidão, de reconhecimento por quem deu sua vida pelos outros que precisavam de assistência, mas ninguém recua, são muitos os pacientes que precisam de socorro e a luta diária continua.
AGORA – Na semana passada, dois médicos morreram no mesmo dia por causa do novo coronavírus. Ao todo, 12 profissionais da medicina já faleceram em decorrência da Covid-19. Como a categoria analisa este drama relacionado com a perda de tantos ?
GF – Essa parte é profundamente dolorosa para nós, sabemos que mesmo com todas as medidas protetivas o trabalho médico envolve riscos pessoais, para si e familiares. Morreram onze médicos e um Estudante de medicina. Foram pessoas devotadas que se dedicaram por amor ao próximo e à profissão ao mister de tratar as pessoas acometidas pelo Coronavírus. Morreram por amor, é uma coisa heroica, sublime, sua memória ficará gloriosa entre nós todos.
AGORA – O Governo do Estado informou que já abriu mais de 400 leitos para atender pacientes com Covid-19. Mesmo assim, o senhor tem feito críticas à gestão. Por quê?
GF – No Brasil, que tem 450 mil leitos, fechou 42 mil nos últimos dez anos, no Estado fechou-se mais de 400 leitos. Na véspera da Pandemia o Estado estava desativando o Hospital Ruy Pereira e fechou Canguaretama. As questões que levanto em relação ao Estado dizem respeito ao Hospital da Polícia que podia ter cem leitos e tem 20 para Covid-19, o João Machado que podia ter 100 e tinha 10 ou 15 abertos, o Deoclécio Marque que podia ter aberto 80, que estavam finalizando, e não abriu nenhum. Isso fora as UTIs do João Machado, de Macaíba, de João Câmara, não abertas depois de todo esse tempo de pandemia e a de Pau dos Ferros que devia ter dez leitos e findou abrindo apenas quatro. São questões pontuais. Quanto aos 400 leitos não consigo encontrá-los, penso que quase todos se tratavam de leitos como os do Hospital Giselda Trigueiro que transferiu pacientes para o Hospital Universitário e destinou os leitos desses pacientes para Covid-19. A insistência do governo em trazer empresas de fora para no início abrir hospital de campanha ou administrar UTIs tem sido outra política errada. Sem experiência no mercado local, sem ter médicos nem capacidade de arregimentação de profissionais, finda-se desistindo, como desistiu-se do hospital de campanha, ou protelando-se indefinidamente a abertura dos leitos de UTI, esperados há três meses.
AGORA – Que mensagem o senhor gostaria de transmitir à população neste momento?
GF – Vejo erro dos governos em não investirem na educação e orientação das pessoas, diminuíram os transportes coletivos, provocando aglomerações, não distribuíram máscaras, pediram às pessoas para evitarem em vez de procurarem os serviços de saúde. Tudo isso provocou mortes que poderiam ser evitadas. O governo trancou as pessoas em casa e não ampliou como devia a rede de saúde. Agora ao entrarmos na fase de flexibilização as pessoas devem ter em mente que são responsáveis por sua saúde e pela da comunidade. Os grupos de risco devem continuar a se resguardar, devem ser evitadas aglomerações, devem guardar distância entre as pessoas, deve-se usar álcool gel e máscaras em todos os lugares