Um relatório produzido pelo Ministério Público Federal (MPF) mostrou que, no Rio Grande do Norte, prefeituras registraram a realização de procedimentos médicos em um ano que são até 228 vezes superiores ao número de habitantes. De acordo com o MPF, a origem das verbas que abastecem as prefeituras são oriundas de emendas parlamentares — algumas delas, do chamado “orçamento secreto”.
O caso mais grave é no município de Olho D’água do Borges, que teria aferido a pressão arterial de cada morador cerca de 228 vezes em 2020. Já em Fernando Pedroza, foram realizadas cerca de 226 entregas de remédios para cada habitante em 2017. Para o MPF, os dados podem refletir desde erros nos registros, até manipulações cujo objetivo pode ter sido “criar procedimentos” para justificar o envio e o desvio das verbas federais.
Enquanto isso, o município de Antônio Martins testou a glicemia de cada habitante 120 vezes só nos sete primeiros meses de 2022, o que equivale a realizar o teste a cada 42 horas em toda a população.
Nesses mesmos sete meses, em Carnaúba dos Dantas, foram registrados o equivalente a 108 “atendimentos de urgência em atenção primária com remoção” por morador. Já em 2017, Riacho de Santana realizou 117 exames de urina por habitante. Ao todo, entre todos os exames analisados no relatório, aparecem desde atendimentos clínicos até exames laboratoriais e entrega de medicamentos.
O levantamento foi fruto de um acordo de cooperação técnica firmado entre o MPF, a UFRN e o Departamento Nacional de Auditoria do SUS. Ele foi produzido pelo Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (Lais/UFRN) e teve como fontes os órgãos e plataformas oficiais.
Orçamento secreto cresceu 463% em um ano no RN, aponta MPF
O período analisado pelo MPF foi de janeiro de 2015 a julho de 2022. Levando em conta somente as emendas do “orçamento secreto”, os municípios receberam R$ 202 milhões nos últimos três anos, com um aumento de 463,8% entre 2020 e 2021. O valor passou de R$ 2.861.720,00 para R$ 132.721.380,00. Já em 2022, considerando só os sete primeiros meses, o RN já faturou R$ 66.722.525,00 com o orçamento secreto.
Em relação a todas as emendas, tanto as anônimas quanto as visíveis, o montante chega a R$ 1,07 bilhão no período analisado. Nesse grupo, o ano de 2021 superou os valores de 2020 em 163,4%. E, nos sete primeiros meses, 2022 já superou o total de 2021 em R$ 18,6 milhões. Estes números representam repasses de todos os tipos de emendas parlamentares que foram associados à gestão do SUS no Estado.
Para o procurador da República Fernando Rocha, o levantamento acende um alerta de que existe “algo muito errado”, necessitando de mais investigações dos órgãos de controle. Entretanto, segundo ele, ainda não é possível confirmar se houve crime. “Não podemos ainda apontar responsáveis, nem especificar as irregularidades, mas claramente os números demonstram existir algo muito, muito errado”, enfatiza.
Segundo Rocha, “é possível identificar que a partir de 2020 [início do orçamento secreto] nos diversos municípios pesquisados houve um brusco e acentuado aumento dos procedimentos de saúde, muitos dos quais incompatíveis com as médias populacionais”.
Em 2020, Natal teve aumento de quase 18 vezes nas emendas
Somente nos sete primeiros meses de 2022, o município de Natal já recebeu R$ 16.932.822,00 através de emendas parlamentares. O valor está muito próximo ao recebido durante todo o ano de 2021, que foi de R$ 17.296.177,00.
Já em 2019, último antes do orçamento secreto entrar em vigor, o município só havia recebido R$ 1 milhão para o SUS. No ano seguinte, com as emendas anônimas em funcionamento, o orçamento municipal turbinou e foi para R$ 17.987.364,00, quase 18 vezes o registrado anteriormente.
Orçamento secreto
Segundo o Ministério Público Federal, as suspeitas nacionais apontam para um uso inadequado dos recursos públicos com manipulação dos números de procedimentos supostamente realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos municípios. O objetivo seria justificar repasses financeiros muito superiores aos comportados pelos municípios.
Em 2020, o chamado “orçamento secreto” foi aprovado pela Câmara dos Deputados, e já foi sancionado sem vetos para este ano e para 2023 pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
Chamadas oficialmente de emendas de relator RP9, elas permitem que deputados e senadores direcionem recursos da União para suas bases políticas ou estados de origem, sem que o nome do deputado fique visível. Ou seja, não se sabe quem está destinando o dinheiro público. Na prática, é uma forma de diminuir a transparência dos gastos.
Prisões
Em 14 de setembro, a Polícia Federal realizou as primeiras prisões oriundas do “orçamento secreto”. No Maranhão, uma operação investigou o desvio de R$ 69 milhões no SUS. Diversas prefeituras preenchiam exames e procedimentos médicos que teriam feito e recebiam um dinheiro que pudesse cobrir os gastos mas, na prática, pouco se via mudanças nas unidades básicas de saúde e hospitais investigados.
Confira a tabela de emendas parlamentares para o Rio Grande do Norte:
Ano | Emendas Parlamentares | Emendas Orçamento Secreto |
2015 | R$ 0,00 | R$ 0,00 |
2016 | R$ 0,00 | R$ 0,00 |
2017 | R$ 39.529.223,00 | R$ 0,00 |
2018 | R$ 146.706.791,00 | R$ 0,00 |
2019 | R$ 80.783.608,00 | R$ 0,00 |
2020 | R$ 184.879.655,00 | R$ 2.861.720,00 |
2021 | R$ 302.034.129,00 | R$ 132.721.380,00 |
2022 | R$ 320.708.338,00 | R$ 66.722.525,00 |
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